“Tirem-me o monstro mal da inconseqüência
Essa demência só me faz ruir
Feita traça macabra a puir
Os tecidos de minha existência”.
(palavras tatuadas no tórax do narrador-personagem)
Marica, 11 de outubro de 1906.
Estou aqui parado há mais de uma hora olhando o reflexo de meu corpo esquálido num espelho grande de moldura antiga. Minhas roupas estão sujas e rasgadas. Em minha face, carrego marcas de quem vivenciou todas as más experiências da vida.
Quando sai daqui, ainda não existia a estrada de ferro Niterói x Maricá. Olho para todos os lados e vejo a cidade em que nasci com grande nostalgia. Isso me causa grande dor, pois os anos que daqui fiquei afastado foram-me impostos. Amo essa cidade e queria ter, pelo menos, presenciado esse marco fundamental em sua história. Sai daqui humilhado e estou voltando com um único intento: vingança.
Hoje à noite irei matar a pessoa que destruiu minha vida.
Vou contar minha história:
Nasci nesta cidade em 1858, fruto da união de um pescador com uma escrava. Minha mãe morreu afogada as margens da Lagoa de Jacaroá enquanto lavava roupa. Estava bêbada. Meu pai foi assassinado numa briga de faca. Estava bêbado. Desde pequeno alimentei grande ojeriza pela bebida alcoólica por ela ter sido a culpada pela morte de meus pais.
Mesmo com todas as dificuldades da vida humilde de pescador, aprendi a ler e dedicava boa parte do tempo a leitura. Aonde ia, levava um livro em meu bizaco. Por causa deste costume, ganhei a alcunha de professor.
- Eita! lá vem o professor com livro embaixo do braço. Tú vai pescá ou vai lê, “fessô”?
Era assim. Uma vida tranqüila e calma. Sentia-me envolvido pela magia do mar e dos livros. Enquanto meus amigos bebiam cachaça na tendinha do Chico Branco, eu recitava minhas poesias. Todos gostavam. Riam, aplaudiam e faziam todo tipo de comentários. Sentia-me reconhecido e importante. Amava aquela vida, gostava de meus amigos e era feliz.
Teve uma grande festa na igreja Nossa Senhora do Amparo e, embora eu não gostasse de sair à noite para não ter que aturar as bebedeiras de Simão e Zé Crispim. Cedi diante a constante insistência dos dois e a promessa de que não iriam beber.
- Vambora, “fessô”. Um morenão desse, novo e bunito vai ficá ai fazeno o quê? Leno esse livro véi? Ta chei di mulé bunita lá, ta bom? V’ambora! V’ambora!
- Tá bom, tá bom. Mas eu só vou se vocês selarem meu cavalo!
Saíram correndo feito duas crianças. Já estavam bêbados. Fui tomado de uma súbita raiva devido a inconseqüência deles sem desconfiar que em pouquíssimo tempo, cometeria uma que arruinaria minha vida.
Naquela noite eu iria conhecer a paixão e o ódio.
& & &
Tomei um banho e botei minha melhor roupa. Estava calçando minhas botas quando chegaram Simão e Zé Crispim fazendo o maior estardalhaço.
- V'ambora , já tá todo mundo pronto, só farta ocê.
Estavam bêbados.
Não respondi. Dirigi-me a mesa e peguei o meu bizaco.
- Tem jeito não! Aonde vai o professô vai o livro junto.
A noite estava espetacular. A Lua cheia refletida na lagoa iluminava nosso caminho. O Céu estava mais claro que de costume e as estrelas eram incontáveis.
Quando cheguei na praça, fiquei impressionado com a quantidade de pessoas ali presentes. Simão e Zé Crispim eram os mais eufóricos. Seus olhos brilhavam diante o folguedo. Em poucos minutos haviam sumido na multidão. Todos estavam contagiados com a animação, menos eu. Fiquei ilhado mesmo com tanta gente a me cercar. Sentia-me solitário e triste. Fiquei alguns minutos assistindo a apresentação de alguns músicos que tocavam e logo em seguida tomei a decisão de ir embora. Lembrei-me que meu bizaco estava com Zé Crispim (tinha tomado de mim numa dessas brincadeiras sem-graça) e fui procura-lo. Havia uns palanques montados ao lado da igreja com alguns políticos e aristocratas discursando para um aglomerado de pessoas. Avistei os dois e aproximei-me para avisar que já estava de saída. Eles estavam abraçados, rindo e cantando uma modinha, cada um com uma garrafa de cachaça na mão.
- Me dá o bizaco que eu vou embora, seus cachaceiros!
Simão estava tão bêbado que mal conseguia ficar de pé e suas palavras eram tão trôpegas quanto o seu andar.
- Que naaada, “fessô”. Alá no palanque... Nunca vi tanta muié buniiita i bem vestida. Óia! Óia!
Enquanto falava, segurava-me pelo pescoço e direcionava minha cabeça para o palanque.
Foi então que eu vi, num relance, a criatura mais bela desse mundo.
Fiquei estático e pasmo diante aquela visão que nem em meus mais belos sonhos conseguiria imaginar. A pele era tão alva que parecia estar diante de uma escultura viva de Miguel Ângelo. Os olhos possuíam um brilho próprio tal qual uma estrela que acabara de nascer. Estava vestida como um anjo. Oh!... Que visão maravilhosa! Minhas pernas vacilaram, meu coração disparou. Senti-me um touro no abatedouro.Por ela eu mataria, por ela eu mataria!!
Ouvi umas palavras como se sussurradas em meu ouvido. Era Simão mas ele não sussurrava, estava gritando! Fui despertado do meu transe pelo maldito ébrio.
- Acorda hômi, acorda! Nóis que bebe e tu que fica bêbo? Quié iiisso?
Agarrei-o pelo colarinho com força.
- Diga-me Simão! Diga-me quem é aquela deusa de branco que eu não conheço nem nunca li sobre ela nos livros de mitologia. Diga-me quem é aquele anjo. Acho que Cupido me flechou! Estou sonhando? Responda-me Simão!
Gritava essas palavras enquanto sacudia Simão violentamente para frente e para trás. Zé Crispim intercedeu me puxando pelo braço.
- Professo, que diacho é isso? Qué mata Simão? Nunca ti vi assim, ta ficando doido?
- Então, diga-me quem é aquela moça?
- Tú num pode chegá nem perto, professô. É Evelina, filha do Barão de Inoã. O hômi é brabo que nem siri na lata. Ali tu só vai arrumar desgraça. Abadona que num é pro teu bico!
Virei-me para o palanque. Só tinha olhos para o meu amor. Há! Que desgraça! Não conseguia me imaginar sem ela ao meu lado. Definharia sem a sua presença. Como poderia lhe dizer tudo isso? Como me aproximar de minha deusa? Ha... Que dor terrível em meu coração!
Mesmo conseguindo chegar perto de minha amada, não conseguiria expressar tais sentimentos. Meu maior mal era a timidez que me cortava as palavras da mesma maneira que o aço corta o ventre do suicida com sua frialdade inorgânica.
Em um dado momento, não pude acreditar no que via! Parecia uma miragem mais era real. Ela me olhava! Sim, ela me olhava! Que intensa alegria! Dos seuslábios brotou um sorriso que exprimiu todos os seus sentimentos. Oh Deus! Não pude acreditar quando ela retribuiu meu pensamento! Que visão esplendorosa. Seria capaz de singrar os sete mares para encontrar tal sorriso. Poderia ficar dias só contemplando sua imagem mais do que adiantaria só pensar e não agir? Tinha que fazer algo. Não poderia perder tal oportunidade. Ela continuava me olhando fixamente. Como resistir? Seus olhos pareciam me chamar e seus lábios pareciam pronunciar meu nome. Ah, santa tentação! O que fazer, meu Deus, o que fazer?
De súbito, Zé Crispim parou na minha frente atrapalhando minha visão. Ficou cara a cara comigo, falando e impregnando meu olfato com seu hálito forte de cachaça barata.
- Que cara é essa “fessô”? Nunca ti vi desse jeito. Tu vai arrumá merda! Agora eu que quero ir embora!
- Sai da frente! Não vou embora enquanto não tiver com Evelina.
- Tu tá é doido! v'ambora!
O cheiro de cachaça era tão forte que cheguei a sentir o seu efeito fazendo-me ter uma idéia reveladora.Louca e no entanto, racional:
Zé Crispim era tão tímido quanto eu e no entanto quando bebia, falava pelos cotovelos. Era isso!Se eu provasse aquela droga, teria a coragem e a atitude necessária para resolver a priori todo aquele impasse instantâneo e forte que surgiu em minha vida! Tudo estava resolvido. Fiquei decidido a abrir a caixa de pandora e provar do mesmo veneno que matou meus pais. Tudo pela Evelina! Tomei a garrafa da mão de Zé Crispim e emborquei-a com sofreguidão. Senti como se a lava de mil vulcões invadissem minhas entranhas e num instante, toda a ojeriza que alimentei durante minha vida sumiu dando lugar a um mórbido prazer.
Em instantes, surgiram mil palavras e idéias em minha mente. Eu poderia fazer qualquer coisa! Não escutava mais nada do que meus companheiros falavam. Só tinha olhos e ouvidos para meu amor. Nunca em minha vida as idéias fluíram tão bem.
Tirei o livro do meu bizaco, arranquei uma página em branco e no repente escreví a seguinte poesia:
Soneto de atração.
“Evelina, esse seu magnetismo
me atraiu como um imã potente
e fez gerar em mim um fogo ardente.
Em minha mente emana o otimismo
que deu-me esse sonho inocente
de achar bom cair em teu abismo!
Compús palavras soltas em lirismo
criando nossa paixão ascendente.
Então, meu amor, venha me abraçar
pra nos fundirmos numa só pessoa
e, enfim, nosso universo se alinhar.
Do que farei, nada será à toa.
Tudo servirá para aumentar
O grito da paixão que em mim ecoa.”
Do outro lado da folha escrevi:
“Quero falar-te pessoalmente. Encontre-me embaixo da amendoeira grande, na rua da feira.
Mil beijos.
Jurandir Mendonça"
& & &
Caminhei para o palanque, chamei uma escrava e lhe disse ao pé do ouvido:
- Entregue este bilhete a Evelina. Não deixe ninguém perceber, senão depois você vai se ver comigo. Vá, vá!
Fiquei observando a escrava lhe entregar o bilhete. Ela dobrou, guardou em sua algibeira, falou alguma coisa no ouvido do pai dirigiu-se para um canto do palanque. Começou a ler. Olhou para mim e sorriu um sorriso de confirmação. Meu coração disparou. O grande momento estava chegando.
Sai em disparada na direção da amendoeira. O tempo que esperei pareceram séculos. No momento em que a vi se aproximando acompanhada de uma escrava, senti um frio na espinha e fiquei paralisado quando escutei sua voz:
- Quem és tu que nunca vi e que, no entanto me escrevestes palavras tão bonitas como se já me conhecesse a tempos? São verdadeiras suas palavras ou tudo não passou de uma grande pilhéria.
- Evelina,
palavras em minha boca vagam a esmo
mas no soneto escrevo o que sinto.
Expresso-me direito e nunca minto
senão enganaria a mim mesmo.
-Sou Jurandir Mendonça, aquele que te amará para sempre.
Disse isso, me aproximei e lhe dei um beijo suave, de ternura e amor. Senti-me completo. Fui envolvido pelo seu cheiro, sua boca e sua pele. Escutei fogos. Meu coração estava preste a explodir. Não conseguia parar de beija-la. Ela era toda minha naquele momento eterno.Sentí o fogo da paixão em toda sua plenitude e compreendí em um instante o que muitos escritores levaram toda uma vida para tentar explicar.Naquele momento eu era tão imenso como o universo e tão minúsculo como um grão de areia. Percebí que não havia diferença entre estas duas grandezas. Compreendí e entendí toda a complexidade do universo ao sentir o toque de uma Deusa encarnada. Eu era tudo e nada!
Fui despertado de meu transe sentindo uma mão rude me puxar pelos cabelos e me separar de meu amor. Era o Barão de Inoã com meia dúzia de lacaios. Era o próprio demônio expulsando-me do céu. Uma força sinistra capaz de, com apenas um gesto, fazer com que eu mudasse em instantes da condição de abençoado a maldito!
- Desgraçado! Quem você pensa que é? Vai se arrepender pelo ultraje que cometeu, maldito!
Em seguida me deu uma forte chicotada no rosto. Não consegui ver mais nada. Senti apenas a descarga de socos, ponta pés e chicotadas. Cai no chão e continuei sendo surrado por um bom tempo escutei o estalar de meus ossos sendo quebrados e os gritos de Evelina. Desmaiei.
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Recobrei a consciência duas semanas depois. Estava deitado numa esteira em um quarto pequeno de um casebre antigo no centro do Rio de Janeiro. Veio acudir-me uma tal Dona Rita de Albuquerque, tia de Simão. As notícias não foram nada agradáveis. Estava proibido de voltar a Maricá, tinha várias fraturas pelo corpo, meu rosto estava desfigurado e só poderia ficar no casebre mais duas semanas. Depois, rua.
- Você deu muita sorte, Jurandir. Se não fosse Simão, a esta hora você estaria debaixo da terra.
Por sorte (ou azar) Dona Rita conseguiu-me emprego nas docas do cais do porto como estivador. Em pouco tempo envolvi-me com jogos, drogas, bebidas e prostitutas. Fazia de tudo para esquecer Evelina, mas não conseguia nem por um dia, apagar de minha mente a sua imagem.
Já não sorria. Vivia amargurado e triste. A dor da saudade me torturava cada vez mais.
Em uma de minhas noites de esbórnia, levei a prostituta Iracema para o cortiço em que eu morava. Estava completamente bêbado e lhe falei do amor proibido que sentia por Evelina. Ela começou a rir e a me jogar pilhérias. Pedi-lhe para parar. Ela não me deu ouvidos e continuou a pilheriar e sorrir sarcasticamente. Não suportei tais brincadeiras tive um surto de cólera e rasguei-lhe o ventre de lado a lado com a minha peixeira.
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“Tirem-me o monstro mal da inconseqüência.
Essa demência só me faz ruir
Feita traça macabra a puir
Os tecidos de minha existência”.
Estas foram as palavras que Tião Capeta tatuou em meu tórax quando dividíamos a mesma cela da penitenciária estadual. Amarguei vários anos naquele antro de doenças e desgraças. Foi lá que fiquei sabendo do casamento de Evelina com Joaquim Nabuco. Tinha perdido o meu amor e o que alimentava minha vontade de viver era a vingança. Assim que saísse da cadeia voltaria a Maricá e mataria o Barão de Inoã.
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Maricá, 11 de outubro de 1906.
Escuto o sino da igreja badalar. São seis da noite. Dentro de algumas horas concretizarei o meu intento e descarregarei minha garrucha na cabeça de José Antônio Soares Bezerra, o Barão de Inoã. Caminho pela praça em direção a duas beatas que saem da igreja.
- Boa noite, senhoras.
- Boa noite! Responderam-me em uníssono.
- As senhoras sabem me informar se o Barão de Inoã ainda reside na fazenda do Pilar?
- O senhor não ficou sabendo? O Barão faleceu hoje as cinco da manhã devido a uma gangrena que ele carregava na perna direita.
Levei um choque tão grande que meu coração parecia querer sair pela boca. Senti engulhos, vomitei. Tudo tinha perdido o sentido. Perdi Evelina, perdi a chance de vingança fui tomado pelo desgosto e frustração.
Que desgraça! Deus foi injusto comigo me tirando esse derradeiro prazer.
- Moço, o senhor quer ajuda?
Não respondi.
Caminhei vagarosamente com os passos descompassados de um moribundo para a rua da feira.
Chegando lá, avistei de longe a amendoeira grande onde tinha vivenciado os momentos mais intensos e significantes de minha vida.
Lá estava ela!impávida,imponente, majestosa.
Parecia um alienígena a transportar sobre sua copa os conhecimentos mais nobres, altivos e inimagináveis para um reles ser humano.
Sucumbí a sua energia tão forte quanto a que me foi mostrada naquela noite fatídica.
Senti-me a criatura mais razoável deste universo.
Adorei a tragédia da vida do Jurandir. Bem a sua cara, o coitado do "fessô" se enforcar!! kkkkkk
ResponderExcluirBeijosss